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Martírio

Foi em 2012 quando publiquei um texto chamado "A arte de andar nas ruas (até 01 de janeiro)". Com um título inspirado na obra "A Arte de Andar nas Ruas do Rio de Janeiro", de Rubem Fonseca, demonstrei como era ruim andar pela cidade em época de eleições. Há seis anos, o que me incomodava eram os cavaletes nas calçadas, a hipocrisia dos candidatos que diziam querer cuidar da cidade e a quantidade imensa de papéis (de trouxa) que os mesmos jogavam no meio das ruas. Parece que, depois de adulto, mas nem tão mais velho, os incômodos tornaram-se medos.

Não faz muito tempo, eu tinha uma paixão enorme pela atividade política. Abraçava o prefeito da minha cidade como se fosse meu amigo (já que tinha por ele um afeto de conhecido da minha mãe), participava de programas da rádio dele, tirava fotos e tudo mais. Pouco tempo depois, esse mesmo senhor terminou seu mandato com vários processos nas costas e não quis (ou não pôde) mais se candidatar a nenhum cargo na gestão pública. 
 
Para uma criança inocente, era inconcebível que aquela pessoa tivesse feito algum mal. Seus sucessores, ou sucessor, no caso, era uma pessoa que não parecia tão carismática e acolhedora para com o povo quanto ele. Era um senhor que já me fazia não gostar tanto assim daquele meio. Mas é incrível a capacidade desse senhor de ganhar votos. Hoje ele está em seu terceiro mandato como prefeito, enquanto o prefeito anterior nunca mais concorreu a eleição nenhuma.

Nesse meio tempo, a minha atuação política foi florescendo e recebendo nuances distintas em cada estação. No ensino médio, quando entrei na parte mais rebelde da adolescência, conheci o movimento estudantil e as representações discentes. Foi ali que tive minhas primeiras experiências em cargos representativos e que, em 2010, conquistamos as primeiras eleições presidenciais simuladas, numa campanha pautada por um projeto de nação muito bem amarrado e didaticamente explicado. A política, para mim, não poderia ser feita de outra forma como aquela que fizemos e que alcançou o primeiro lugar: ela anseia pela democracia como a democracia anseia por ela.

Isso durou muito pouco. Quando a situação apertou na instituição, com as eleições internas para a direção do Campus, eu vi a política sendo feita na sua outra face: "xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente". Um dos lados buscava cooptar os partidários do outro oferecendo benefícios e simpatia. Quando percebia que essa estratégia não funcionaria, passava a utilizar de ameaças para calar os opositores da situação. Não houve vitória de um projeto de instituição educacional. Não havia qualquer coisa além da manutenção de um grupo de poder. Isso foi, aos poucos, destruindo quaisquer alternativas de lideranças e, quando chegou ao fim a possibilidade de manter o ciclo, só restava o discurso único. Ninguém mais queria ocupar os espaços de poder, a não ser os pequenos aliados daquele mesmo grupo.

Eu mesmo fui perseguido nessa cruzada. Deixei de militar no movimento estudantil depois de ter sido ameaçado, seja pelas fofocas nos corredores ou pela própria pessoa que tentou me cooptar pela simpatia anteriormente, de ter uma comissão de sindicância aberta contra mim sem que houvesse qualquer desabono de minha parte. Havia, porém, um álibi forjado. Buscaram fundo uma condição para que eu pudesse ser censurado, mesmo no meu último ano do ensino médio. E foi assim que eu deixei de atuar diretamente nas ações coletivas.

Depois de 2012, o país adentrou um novo ciclo estranho no campo da representação política e das manifestações. Antes, os protestos tinham cara, cor e até mesmo partido, era claro quem estava por trás de cada movimento, a face de suas lideranças. Cada uma delas carregava consigo pelo menos uma bandeira progressista bem elaborada e consistente. 
 
De 2013 em diante, as manifestações tornaram-se difusas. Parecia que estava vendo o filme que se arrastaria até os dias de hoje: pessoas que nunca saíram de suas casas para apoiarem os protestos dos professores da minha cidade ou de outras, de repente começam a ir às ruas pedindo mais educação - as mesmas pessoas que reforçavam que estudantes e professores eram vagabundos por fazerem greve e mobilização por essa bandeira. Mas ali não havia uma liderança sequer. Não havia uma bandeira que não fosse a verde, amarela, azul e branca. Era uma massa amorfa, com pedidos genéricos e abstratos, que não seriam aceitos por qualquer bom juiz que ainda exista no país.

Estava vendo o discurso único tomar forma mais uma vez e já sabia, por experiência, que aquilo não era bom. Logo mais os espaços de poder estariam sendo disputados de novo, mas as pessoas que questionassem a situação seriam exaustivamente censuradas ou desencorajadas a tentar ocupá-los. E que, lenta ou rapidamente, as alternativas de liderança se esvaziariam e permaneceriam apenas os pequenos aliados da situação. Foi assim que, de 2013 em diante, nunca mais fui a uma manifestação de rua como participante, apenas como observador.

Weber me acertou com um soco na boca do estômago: eu já havia me desencantado. Mas até o desencanto tem seu lado bom: isso me permitiu crescer e olhar de outra forma o jogo político e as formas como tem sido construída e destruída a nossa frágil República. O desencanto permitiu também que eu pudesse me reencantar em outras frentes, vivenciar boas práticas e abrir os olhos para as possibilidades, sem a magia do dogma ou as correntes inconscientes da coletividade. O pensamento e o sentimento passaram a dar um pouco mais as mãos, para que não "negasse as aparências", nem "disfarçasse as evidências". A minha paixão pela política e pela democracia voltou, mas com outra forma, outras cores e outros cheiros.

Se o caso Marielle Franco já tem mais de 3 (três) meses sem solução, foi por causa dele que resolvi escrever este texto, que também fazia 3 meses que estava engavetado. Às vezes é difícil conceber tamanho martírio. A pessoa se envolve na luta para tentar ocupar o espaço de poder e impedir que o discurso único assalte a nação e, não mais que de repente, é o discurso único que assalta sua vida e a sua presença de todos aqueles que te amam e te consideram. E não se consegue alento para tamanha perda. Morrer por uma ou várias causas. Por ter paixão, acreditar no jogo democrático e ser assombrosamente silenciada "como exemplo".


Pensar nisso me deixa covarde, como já fui no final do meu ensino médio. Esse medo me paralisa e me faz querer sair correndo dos holofotes. Me ater aos bastidores. Mas isso não quer dizer que, ao fazer isso, eu não possa colaborar com quem tenha mais coragem do que eu. Até porque isso pode mostrar para outros tantos, inclusive para mim, que é possível combater o discurso único. Que é possível recuperar a democracia. Que é possível fazer política sem ser líder. Que é possível e eu já o fiz.

Os golpes fazem doer. Alguns fazem até sangrar. Mas não são todos que nos fazem morrer. Para além das paredes do discurso único há um vasto campo de possibilidades. É tempo de curar, mas também é tempo de refletir, de planejar e, principalmente, é tempo de reencantar.

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