Queridas pessoas leitoras, tive vontade de retomar a escrita neste espaço público de monólogo por força da gravidade da crise existencial que venho enfrentando, algo pelo qual cada uma de vocês deve estar igualmente passando graças aos nossos dois anos de pandemia. Essa não é a primeira, nem imagino que seja a última. Mas acho que daqui para frente a forma como lidarei com elas será bem diferente por um motivo inusitado: agora eu tenho meus cachos.
Na real, ter ou não ter cachos nos cabelos não é o detalhe marcante. Nem todo mundo que tem cachos entenderia muito bem o sentimento que vem me atingindo nesses últimos quase dois anos. Quase dois anos de reclusão, um treinamento intensivo para não regredir a uma forma de existir anterior que me colocava num lugar menos autêntico (e menos autônomo), combinado com sequelas de uma doença pouco conhecida e de outras seculares, como a solidão em meio aos muitos contatos, a ansiedade do panóptico social digital, e o vício entorpecente em métricas de produtividade, interações e consumo. Ver meus cachos de volta, no entanto, me ensinou um pouco sobre alguns feitiços do tempo.
Sobre isso, inclusive, me recordo que havia escolhido dar um tempo na escrita desse tipo de texto porque já estava me sentindo esgotado pelos excessos da vida acadêmica de um pós-graduando médio. Não estou dizendo que eu seja médio ou medíocre, à escolha do intérprete, mas que a média da vida acadêmica que se vive no Brasil é de produção exaustiva de coisas escritas e leituras deprimentes. Durante a pandemia, os sentimentos pesados se multiplicaram com a distância maior dos afetos amistosos, românticos, libidinosos e profissionais. As trocas de sentidos (físicos e semânticos) diminuíram drasticamente. As válvulas de escape tornaram-se cada vez mais digitais e mediadas por vidros com cores. Mas mesmo vidros com cores apenas enfeitam a nossa miserável condição desumana das distâncias que (só) parecem superáveis em instantes. Só que cachos não crescem em instantes.
Nesses praticamente dois anos de reclusão, vi pessoas se casando, se separando, mudando de emprego e/ou perdendo tudo. Gente mudando de país, com o valor do real profundo como o pré-sal, e até voltando para o Brasil no meio desse inferno que virou o nosso cotidiano. Eu vi gente mudando emagrecendo e gente engordando num piscar de olhos. Teve também quem eu deixei de ver, inclusive pelos vidros com cores. Ainda assim, o que mais me impressionou foi como as pessoas mudaram seus cabelos. Cabelos grandes, cabelos médios, até uns cortes mais curtos (alguns na máquina 0) deu para encontrar pelas fotos e vídeos, geralmente nos arquétipos inversos do que era comum antes da pandemia. E também era frequente alguma explicação para aquela mudança, além do natural passar do tempo e crescer dos fios.
Mas cabelo, por mais que se possa comprar e implantar, demanda tempo pra crescer. Geralmente o cabelo tem o poder de surpreender: no processo de crescer, tem dias que ele acorda mais feio ou mais bonito, mais armado ou mais maleável, às vezes troca de forma, quebra, cai ou até muda de cor. O meu mesmo demorou quase 26 anos para cachear de novo. De outras vezes que deixei crescer eu disse que queria saber de onde eu tinha vindo, numa alusão ao que o meu professor Erahsto havia comentado em sala de aula, mas os cachos não voltavam a aparecer. Só no meio da pandemia isso aconteceu e agora vivo o dilema se os quero livres e grandes ou se prefiro podá-los para manter algum controle estético.
Esse mesmo dilema aparece muitas vezes em outras situações da vida: discussões políticas e eleitorais que fazem parecer que vamos eleger alguém amanhã, geralmente por motivos cosméticos ou desesperados; discussões tribais sobre artistas, carreiras e outros assuntos que alteram pouco na experiência de vida local, mas que dão sentido de pertencimento a quem se propõe a fazê-las; relações amorosas mediadas por longas distâncias, com promessas de amor suspensas pelo tempo da peste, limites e barganhas estabelecidos pela falta de contato físico. Em todos esses momentos há um pouco de pressa para se pular etapas, desistir, imaginar o fim do mundo, passar raiva e até se apaixonar. Mas eu andei aprendendo com os meus cachos a ter um pouco mais de calma e a relaxar.
Estou aqui com o cabelo macio como nunca tive, sem ter as mãos de outro alguém que eu queria que pegasse nele para experimentar um pouco desse crescimento que nós desenvolvemos juntos ao longo desses últimos anos. Pra falar sobre quantos fios caíram depois que a COVID-19 entrou na minha casa e quantas memórias se foram com eles no processo de recuperação das sequelas. Estou ficando de frente à minha imagem num espelho pequeno (e dos vidros coloridos que repetem o que os olhos eletrônicos veem), observando dia a dia os formatos que vão surgindo, sem perceber muitas mudanças, ao mesmo tempo que levo sustos com as diferenças relacionadas a momentos mais distantes.
É uma temporada bem mais lenta, a temporada dos cachos. Cheia de curvas, quedas de cabelo e entradas nunca antes vistas. Mas é também uma temporada de revisitar afetos, memórias e de experimentar novos volumes, texturas e comprimentos. Que a gente possa crescer juntos e aproveitar bem cada fase que a gente vence, sem ceder ao "surto da máquina zero" ou ao oblívio do isolamento.
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