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A fuga da paixão na curva da indiferença

3:50 da madrugada. Era quase segunda-feira. Quase porque a noite ainda não tinha cedido. O olho cerrado enxergava um cinco no lugar de um três. Era quase um seis, mas não fazia nem três que havia dormido. Pensei: posso dormir até às 8.

O novo sonho do bloco das 4 trazia algumas paixões. Como é da natureza delas, me carregaram com conforto até um "êxtase inebriante", que fez com que meus olhos imaginários brilhassem enquanto falava com um convertido sobre o que me fazia escolher o que havia escolhido. Falava naquele sonho sobre processo de escolha e a curva da indiferença. Eram as minhas paixões se cruzando, mesmo que elas nunca tivessem conversado comigo mais do que uma frase cada.

Não havia sentido naquele sonho, como não havia sentido naquele contato. Por não haver sentido, nem sonho, nem contato foram suficientes para que o desejo de ficar naquele momento de paixões permanecesse. Quando foi às 4:50, o bonde do desejo seguiu seu caminho e deu espaço para uma trava no olho esquerdo, uma bexiga a explodir e um barulho de bomba d'água incessante do cômodo ao lado. Eram quase cinco da manhã e eu havia viajado no tempo para uma existência "inferiormente interessante", "onde cada hora tinha seu intuito diferente", cada passo conduzia um suplício ressentido, e a alma se cobria de sensações de que não havia dormido o suficiente e não conseguiria mais fazê-lo.

A fuga da paixão tentou ser mediada pela tela, que descobriu mais uma vez que alguns afetos que existiam foram liquidamente escorrendo pelas margens de um catálogo digital de olhares. Olhares e toques que já não são mais sensíveis, mas resistivos, carentes de uma manutenção que praticamente não existe mais no mercado. Outra viagem no tempo que poucas paixões se permitem experienciar.

Da fuga da paixão o que restou foram um olho inchado, um corpo com frio e vários caquinhos descobertos de solidão, tristeza e falta. Ah, e tantos outros relatos de fugas. Esses parecem não faltar no mercado. Se for anunciar a sua, tente fazer com estilo. Pela quantidade em oferta, pode ser que a demanda não esteja, de fato, absorvendo tanto assim.

Filip Mroz, Unsplash



P.S.: esse texto tem toques de Marisa Monte e Divertida Mente.


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