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A caixa pálida

Era de tardezinha quando Arthur estava sentado pensando na vida. Naquele mesmo dia ele já havia lido pelo menos 3 jornais diferentes, buscado informações em algumas fontes alternativas e traçado um plano para sua próxima viagem, cujo destino ainda teria de ser escolhido. Ele não estava ligando para onde ia, apenas queria muito sair daquele lugar desgovernado e ver aonde iria chegar.



Seus planos sempre eram à prova de pontas soltas. Ele diz que está sempre pronto para a guerra. Tem comida, água, roupa extra, quase todos os materiais de escritório do MacGyver, um treinamento intensivo nas antigas artes orientais da medicina e da meditação, preparo físico para vencer os desafios e a preguiça, além, é claro, de uma mão de ferro quando se trata de dinheiro. Para que alguma coisa desse errado, teria que escapar a sua cara de pau e curiosidade, pois também não tinha muito medo de gente, a menos que fosse uma grande ameaça a sua integridade física ou financeira, já que o sangue já parecia estar frio como de um réptil.

Pegou sua mochila para olhar o que havia lá dentro. Foi futucando em cada bolso. Talvez nem ele soubesse o que estava procurando. Parecia frustrado e preocupado com alguma coisa. Já era a terceira vez que ele rodava a casa toda e parava ali, fazendo a mesma coisa, procurando alguma coisa que parecia perdida. Olhou uma última vez, eis que percebeu que seu telefone tocava em cima da mesa.

Logo que atendeu, percebeu que a voz era familiar. Era a voz de um senhor de mais idade, bem acolhedora e gentil, mas que parecia um pouco apreensivo, meio carregada de uma pequena pressa. Dizia que havia algo escondido debaixo do colchão e que deveria ser encontrado às pressas, pois alguém estava vindo pegar (e isso não seria nada bom).

Arthur correu para a cama e jogou o colchão para cima. Ele não se lembrava nem de quem era aquela voz, muito menos de ter colocado algo debaixo do seu colchão. Mas como sua intuição havia apontado, fazia algum sentido verificar o mais rápido possível o que estava acontecendo. E, de fato, havia algo ali.

Embaixo do colchão onde ele dormia todos os dias, havia uma caixa que nunca fora percebida até aquele momento, nem mesmo havia feito relevo. Era algo muito bonito, coberta de pedras que pareciam valer uma fortuna, fechada por um grande laço que cobria os quatro cantos da caixa. Não parecia pesada, pelo contrário, era tão leve que parecia estar vazia. Se perguntou se deveria abrir para ver se não estaria, de fato, vazia. Não fazia sentido algum.

A voz daquele senhor sussurrou novamente em sua mente, dizendo que não havia tempo a perder. Era preciso fazer uma escolha. Ele poderia deixar aquela caixa fechada para sempre e permanecer na dúvida em relação ao seu conteúdo ou abri-la para descobrir o que está guardado. Se permitiu olhar de novo para a caixa, procurou ao redor por algo fora do comum, e, só depois de perceber que tudo estava tranquilo, resolveu abri-la e ver o que havia dentro. Levantou a tampa com cuidado até que, de repente, se viu sendo jogado para trás. Teve que lançar a caixa para longe, pois além de ter sido arremessado pelo conteúdo que saía dela, percebeu que havia ficado excessivamente pesada. Deveria pesar toneladas.

Percebeu que o movimento que o lançou para longe, do conteúdo escapando da caixa, estava se esgotando, então resolveu chegar perto mais uma vez. Dessa vez a caixa estava realmente vazia e mais leve, mas também não possuía mais suas joias na tampa. Havia se tornado uma caixa sem conteúdo, pálida, meio sem graça.

A voz voltou a sussurrar. Dessa vez, Arthur queria perguntar o que estava acontecendo. Eis que ouviu: "essa caixa representa todos os sonhos e sentimentos adiados que tivemos ao longo dessa vida enquanto procurávamos coisas que não sabíamos o que eram. Por fora, parecia bem rica e talvez trouxesse fortuna, algo valioso que coubesse dentro dela sem pesar tanto. Porém, depois que a abriu, deu para perceber como pesa guardar tudo isso, que ficou acumulado enquanto dormia e nem percebeu que estava ali, ou só fingiu que não."

"Mas e as joias?", pensava Arthur. "Eram pura ilusão. Não existe riqueza alguma nessa caixa. Ela apenas apodrece aquilo que é guardado nela. Não é por acaso que você também está, aos poucos, apodrecendo e enlouquecendo aqui dentro. Essa casa, este quarto, o seu coração fechado, tudo isso se tornou um pedaço dessa caixa. O meu papel era fazer com que nós não nos tornássemos o que eu me tornei."

Ainda confuso, Arthur queria saber de quem era aquela voz. Não demorou muito, conseguiu entender de onde vinha a familiaridade: aquele sábio era ele mesmo, num momento de meditação profunda enquanto dormia em cima de sua cama confortável que lhe abraçava como se Morfeu tivesse lhe acolhido. Sim, estava sonhando e logo embaixo dele estava uma carta de amor que ele havia escrito há algum tempo, mas que decidira não mandar por não confiar se era aquilo o que ele sentia e o que aconteceria em seguida, ao demonstrar o que havia guardado em seu coração. Ele havia caído no sono ao reler algumas das coisas que escreveu e relembrar aquilo no que acreditava quando estava mais puro, jovem e amante.

Arthur sorriu. Dobrou a carta, fechou os olhos e voltou a repousar. Já não era mais um sentimento adiado. Foi um fato que já passou, mas que lhe permitiu reencontrar com aquilo que foi cativado.

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