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Rudolph

Pensava que podia deixa-los felizes por estar por ali, que ao sempre estar presente, um presente seria. Trazer bugingangas e atender cartinhas era minha felicidade,
só esperava um afago quando deixava cada cidade.

As crianças foram crescendo, deixando as velhas renas de lado. Quando queriam brinquedos, sempre esperavam no andar de baixo. Eu ficava do teto esperando o sacudo descer, pra que quando fosse na janela um carinho receber. Nada acontecia e as renas que comigo estavam olhavam para meu nariz vermelho e riam por eu ser apenas um palhaço.

Gostava muito das crianças, sem que elas gostassem de mim de volta. Era legal ver os sorrisos delas, mesmo sem saber que esses surgiam pela minha galhada e o nariz piscante.

Chegou um dia que acordei diferente. Com uma cara amassada e olhando para frente. De tanto olhar para os lados em busca das crianças e outras renas, esqueci de olhar para onde andava e ao fundo com quem estava. Crianças? Quem dera fossem elas assim nomeadas. Aquelas criaturas cheias de ambições e jogadas planejadas, sempre a espera de algo que pudesse ser delas.

Me desesperei. Corri atrás de Papai Noel que grande sábio era, além de ser muito preocupado comigo e ter um saco enorme para me ouvir falar. Foi então que ele me contou um segredo do porquê de ele ser tão amado. Dizia ele: "meu jovem, eu só apareço para essas pessoas uma vez no ano e ainda assim não me mostro para elas. Infelizmente as pessoas são assim: gostam daquilo que não têm. Não valorizam gestos bons achando que todos serão como os delas: esperando algo de valor em troca. Nós aqui fazemos sem esperar que nos deem algo. Queremos apenas existir para essas pessoas, e se fizessemos isso todos os dias, não seriamos notados, muito menos ficariam contentes com nossa presença. Agora meu caro, aprenda: você é excepcional. Seu nariz vermelho é uma benção, pois nas noites mais sombrias você ilumina o caminho de vários para que cheguem ao seu objetivo. Eles podem até rir de você por causa dele, mas quem precisa mais dessa sua dádiva são eles próprios. Então não busque reconhecimento nesses outros. Todos os dias olhe seu reflexo e veja se você está feliz consigo e com o que você faz. Um dia você vai encontrar aquelas pessoas que realmente vão gostar de você e se preocuparão contigo da mesma forma que você se preocupará com elas. E nessas sim você poderá ver o reconhecimento refletido."

Papai Noel sabe das coisas. Refleti um tanto. Decidi então que não tentaria mais brincar com as crianças, já que essas estavam apenas interessadas em rir do "palhaço corno". Por um tempo tive um "saco" tão grande quanto o de Papai Noel pra suportar essa imagem que já tinha sido colocada em minha cabeça de tanto que repetiam. Logo percebi que não tinha mais um nariz de palhaço, mas sim um farol onde os perdidos buscavam um lugar para atracar, buscar refúgio. Percebi que não era eu o fraco das galhadas construídas pela desonra, mas sim um ávido defensor dos verdadeiros feridos. Das causas perdidas.

Encontrei-me então com meus pares, ficando mais feliz porque agora tinha encontrado o tal reconhecimento que Papai Noel havia dito. E ele estava certo: um tempo investindo no meu caminho e no meu reflexo me fez bem.

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