Voltei à Universidade. O curso não é necessariamente algo que me faça pular de alegria por gastar meu precioso tempo com ele. Geralmente o que se ensina no dia a dia da graduação são informações técnicas, de leitura e interpretação do ordenamento criado como um velho fato social, generalizado, anterior e coercitivo. As fileiras de carteiras dispostas tal qual um templo em que se vai ouvir a pregação, dificultando a troca de olhares e a partilha de conhecimentos e sensações entre os que ali estão. As disciplinas, salvo algumas exceções, não conseguem tirar mais do que pequenas curiosidades pontuais da minha mente fértil. Os estímulos definitivamente não são apropriados e, aparentemente, pouco será produzido a partir deles. No máximo reproduzido. Ou, no caso, vomitado em provas (e na manutenção de um status quo).
Estava, porém, na expectativa de participar da palestra do professor Barroso. Do tal mundo do Direito, ele é uma das pessoas as quais tenho profundo respeito e até admiro pela sua capacidade criativa e inovadora. Diferente da grande massa que se forma no "tecnólogo jurídico", esse senhor trouxe para este país um novo paradigma naquilo que se entende como Direito (no mais amplo sentido que se possa dar a esta palavra). Foi a partir dessas ideias que hoje temos um sistema constitucional voltado para a proteção dos direitos de cada pessoa (e da diversidade que emerge de cada uma) e da busca por soluções mais justas e equitativas quando há conflitos.
Alguns dias antes da palestra, meu parente que gosta de debater temas políticos, filosóficos, econômicos e sociais comigo resolveu me enviar um vídeo em que o palestrante retruca um estudante universitário estadunidense que, na ocasião, estava defendendo a distribuição de renda e a reparação de danos sociais produzidos ao longo da história através de um sistema de "privilégios ilegítimos". O orador diz que, antes de obrigar que outras pessoas deem este retorno, o estudante deveria fazer sua parte e doar suas posses, abdicar dos seus privilégios, e enfatiza que estar naquela Universidade é um privilégio. E como o estudante não se abstém disso tudo, pode ser chamado de hipócrita.
Não sei como funciona a lógica nos Estados Unidos, mas divergi frontalmente quando meu parente comentou, junto do vídeo, dizendo que o fato de eu estar na Universidade é um privilégio. Entendi o que ele quis dizer, mas não concordo com tal afirmação.
A Constituição brasileira possui um amplo conjunto de Direitos Fundamentais. Sabe-se também que estes não se esgotam naqueles listados. Dentre os direitos que cada pessoa tem ao viver no Brasil está o direito à educação. Direito. Não é um privilégio.
É bem verdade que algumas vezes estes termos se confundem, mas isso se dá talvez por uma questão cultural: o brasileiro ama (e até busca) ter privilégios, dar um jeitinho; mas quando tem um direito, cobrá-lo (seja de quem for) é sinônimo de ser "moralista", "pedante", "chato", "não ser esperto", entre outras expressões que adquirem um sentido negativo, quase que inibitório.
Direito então é algo amplamente garantido. Tem generalidade e abstração. Pode ser exigido porque é coercitivo. É uma obrigação que precisa ser satisfeita e que se deve trabalhar para isso. Privilégio é outra coisa. Privilégio se concede a uma pessoa ou grupo específico, sem obrigação alguma, apenas pelo prazer de atender às vontades desse público. O privilégio e o favor são vizinhos que dividem a área de lazer. Por isso trocam-se privilégios, mas direitos são conquistados.
Um direito não deixa de ser direito por estar numa situação privilegiada. Por exemplo: estou na Universidade porque passei no vestibular e havia uma vaga. Eu ocupei esta vaga, que é extremamente concorrida, por ser limitada, enquanto outras pessoas não puderam fazê-lo. Eu recebi um privilégio ou conquistei um direito? O fato das vagas serem limitadas fez com que o direito à educação dos demais candidatos se esgotasse? E o Estado? Se a Constituição prevê este acesso à educação para todos aqueles que estão sob sua jurisdição, o Estado deve buscar aumentar a oferta (e a manutenção da qualidade) para aqueles que quiserem estudar ou vai simplesmente remover este direito do seu cosmos?
A linha entre o que é direito e o que é privilégio fica tênue, mas torna-se nítida se iluminada na frequência adequada. A Constituição é uma boa fonte de luz. Um direito não deixa de ser direito por estar sendo concretizado para uma minoria. Ele continua sendo um horizonte para onde devemos caminhar. Ele pode ainda não ter se tornado regra, mas também não deve ser tratado como exceção.
Os privilégios, como os que recebem os parlamentares e altos cargos das várias Funções do Poder Público, bem como quem fura a fila, quem suborna, quem recebe um dinheiro extra da avó, quem tem acesso ao camarim d@ artista favorit@, ou até mesmo quem encontra alguém para amar pro resto da vida - que pode ser um romance, parente ou amigo -, podem até ser regra, mas não obrigam ninguém. Privilégio nem sempre tem origem suja. É bom saber desfrutar dos genuínos. E agradecer por eles.
Acho que vou concordar em partes com o Marcos: a experiência de estar na Universidade e o aprendizado pessoal que tenho desenvolvido ao longo dessa jornada, isso sim, além de um direito conquistado, é um grande privilégio que a vida me deu. A dádiva da existência.
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