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Mais elegantes no frio

Acabou o verão. De uma vez, todas as minhas "ites" vieram com o cair das folhas e da temperatura. Não consigo mais usar roupas leves e curtas. Dificilmente tenho condições de correr, algo que eu amo tanto. Minhas caminhadas vespertinas e noturnas também terão de esperar um pouco. Me sinto estagnando, enclausurado em casa e todo dolorido. E ainda nem é inverno. Ó céus.




Toda vez que tenho oportunidade falo bem alto "EU ODEIO FRIO!", e, não mais que de repente, sou repreendido por alguém que fala "tá louco? Eu amo frio!". Em seguida, fala como o frio é bom para que as pessoas possam se vestir com várias camadas de roupa (lindas, por sinal), se olharem no espelho e se sentirem elegantes, mais bonitas e arrumadas, sem o incômodo suor que borra a maquiagem ou deixa manchas (a famosa "pizza" debaixo dos braços já não aparece tanto).

Falam também do vinho e da diminuição da fadiga, dos dias de chuva e das cobertas. Das séries. Dos livros. Dos filmes. Das comidas e bebidas mais quentes, que, por sinal, aquecem o corpo. O corpo precisa ser aquecido no frio para que não fiquemos doentes. O frio é legal para essas pessoas. Ele me dói, mas parece que o que deveria importar para mim é que o frio me possibilita ficar mais elegante, mais culto. E só.

Ok. Tem gente que gosta de se vestir com mais roupas ou tons mais escuros e no calor talvez não seja confortável de fazê-lo. Tem gente que gosta do vinho e de dormir com cobertor, então o frio seria mais propício de aproveitar esses pequenos prazeres.

Mas por que mesmo que "as pessoas ficam mais elegantes no frio"? Será que é porque elas fazem coisas que gostam de fazer? Será que é porque podem fazer coisas historicamente tidas como "cultas" (e europeias) nesse nosso 'país tropical abençoado por Deus'? Ou será que o frio tem refletido o que tem sido cultivado na nossa sociedade: camadas de aparência colocadas sobre um corpo frio que precisa de afeto e movimento para se aquecer?

Parece que fiz um longo salto lógico aqui, mas é importante fazê-lo. Quando eu digo que odeio o frio, me refiro a vários tipos de frio. Inclusive o físico, que me desperta dores também físicas (nas juntas, nos músculos, nos seios da face...), mas também me refiro ao frio interior. Gente fria. No máximo simpática, que corta a gente quando queremos uma conexão de verdade, troca de calor, de vivência. Gente que usa camadas e camadas de aparência para aquecer um corpo frio de forma artificial.

Eu gosto bastante da ideia do meio termo (mais para o calor, por óbvio), tanto que minha estação favorita é a primavera. Acredito muito nos ciclos e na necessidade deles para que a vida se desenvolva, mas é na primavera que os animais voltam para a superfície, acordam do estágio de hibernação (quando não precisam mais se abrigar do frio exterior) e voltam a interagir entre si naturalmente.

E não há nada de errado em gostar desse meio termo. Não é preciso definir uma luta entre calor e frio em extremos, até porque ambos são fatores subjetivos da experiência. Há momentos em que estamos mais afim de hibernar, ficarmos a sós, introspecção. Há outros em que ficamos dispostos a "botar a cara no sol", sair e interagir. E tudo bem com isso. São ciclos autênticos mesmo.

Olha só, se você gosta de um tempinho mais frio eu te compreendo, ok? Inclusive eu já li que a melhor forma de se aquecer no frio é contato entre peles. Sim, dois corpos quentinhos juntinhos, Nuzinhos da Silva, são melhores até que aquele casacão que protegeria um só. Isso também se aplica às nossas relações.

Cá entre nós, prefiro correr pelado (ou quase isso) do que ficar travado com um monte de roupa que limita meus movimentos, até mesmo de dar ou sentir um abraço. A elegância, pra mim, está estampada no corpo: nos olhos, nos lábios e nos gestos.



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