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O dilema da filiação: uma crônica sobre as duas últimas eleições presidenciais no Brasil

 *Texto publicado originalmente no blog "O Dever da Esperança", em fevereiro de 2023.

No final dos anos 1910, quase no encerramento da Primeira Guerra Mundial, Max Weber brindou a humanidade com uma conferência chamada “Política como vocação”. Algumas ideias centrais dessa obra, como o título pode sugerir, ajudam a delinear a compreensão sobre a atividade política e apresentam dois modelos éticos distintos: a ética da convicção e a ética da responsabilidade.

De forma bem sintética, o modelo da ética da convicção costuma ser o mais comum: as pessoas entendem que há “certos” e “errados” bem delimitados, geralmente movidos por dogmas, máximas ou crenças específicas. Por exemplo: não matar, não roubar, não acobertar um criminoso, não mentir, dentre outros imperativos, sobretudo do que não fazer. Há também aqueles positivos, mas que não necessariamente têm a mesma força para levar à ação: dar esmola e ajudar os mais necessitados, duas das lições mais apregoadas nas expressões religiosas de maior adesão no mundo, não necessariamente se concretizam na vivência diária de quem diz seguir tais doutrinas ou congregar nessas comunidades de fé. Isso, porém, não muda o fato de que a percepção do sujeito no mundo está enviesada e comunicativamente articulada em dualidades simplificadoras de processos decisórios, seja para punir ou absolver, agir ou omitir, apoiar ou criticar, tanto aos outros quanto a si.

Na ética da responsabilidade, o sujeito compreende os processos decisórios dentro de suas complexidades e justamente pelo que são: processos. O sujeito que se move por esse modelo ético pode até levar suas convicções para a mesa, mas sabe que elas não são absolutas, não dão conta, por si, da responsabilidade pessoal pelos resultados de sua ação social. É preciso sopesar, então, os conflitos de interesses, os meios, os fins e toda a agenda que envolve o contexto de decisão sobre o agir, seja ele no seu sentido positivo, de concretamente realizar um esforço ao encontro ou em encontro de algum objetivo, ou em seu sentido negativo, de omissão.

Weber ensina que as lideranças políticas, que costumam chefiar a burocracia estável, os funcionários públicos de carreira, tendem a utilizar a ética da responsabilidade como modelo de tomada de decisão, enquanto que seus subordinados vinculam-se a um dever de obediência prescrito pelo modelo da ética da convicção, considerando suas normas, crenças e princípios do Direito Público. Isso porque as lideranças políticas dependem, no seu processo de busca pela ocupação de espaços de poder, abrir mão inclusive de promessas anteriormente feitas ou até mesmo rever alianças e desafetos históricos. Em troca, elas poderiam garantir um meio de sustento (viver “da” política), manter-se nos espaços de poder, usufruir da legitimação jurídica do Estado para violentar e estabelecer mais uma forma de dominação além da carismática, a “dominação pela legalidade” (viver “para” a política).

Os processos eleitorais no Brasil fazem com que pessoas que majoritariamente pensam numa estrutura moldada pela ética da convicção tenham que escolher lideranças que articulam o mundo segundo um outro modelo ético. São, de certa maneira, duas línguas distintas, mesmo que utilizem significantes parecidos. Ouve-se a palavra “democracia” tanto no meio popular, quanto nos meios internos dos partidos, mas seus significados são bastante distintos.

A ideia da defesa da democracia enquanto valor máximo para balizar os processos de escolhas pode conversar com a ética da convicção, mas não se garante no sustento de seu conteúdo. Qual seria o significado da democracia para um eleitor que se entende progressista e não filiado a partido político em 2018? Para um grupo poderia ser ter o Lula como candidato, uma aposta feita pelo Partido dos Trabalhadores como estratégia de comunicação até que o TSE declarasse a sua sabida inelegibilidade. Os motes “Eleição sem Lula é fraude”, “Lula Livre” e “Lula é uma ideia” foram disseminados diuturnamente até que houve a consolidação do nome de Haddad no segundo turno contra Bolsonaro. Outros grupos entenderam de maneira diferente: a defesa da democracia passaria primeiro por um questionamento do status quo, tanto sobre as estratégias de governança política, quanto ao modelo econômico.

As dissonâncias dos significados da palavra democracia no campo progressista, porém, não foram mais fortes na linguagem popular do que a força da convicção de parcela majoritária do povo brasileiro.  Essa maioria se convenceu ou foi convencida de que o Partido dos Trabalhadores e tudo anexo a ele representavam um mal maior do que um deputado declaradamente ignorante, sabidamente usurpador da máquina pública em benefício próprio (usava dinheiro do auxílio moradia para “comer gente”), mas que parecia viver no mesmo mundo – conjunto de todos os fenômenos e articulação de sentidos por intermédio da comunicação – ou seja, que falava a mesma língua, percebia a realidade de alguma forma semelhante.

Foi mais ou menos nesse período, próximo das eleições de 2018, em que tive meu primeiro contato com os partidos políticos, tentando construir um debate entre as candidaturas à vice-presidência na Universidade Federal de Viçosa. Conheci amigos filiados a partidos do campo progressista e partilhamos muitos momentos. Mais de uma vez fui chamado de “grande quadro” e instruído na prática da política como fazem nos partidos, sobretudo como funcionam as hierarquias e os processos internos. E foi justamente aí que surgiu o dilema da filiação: o que eu poderia fazer de diferente estando filiado? O que eu não poderia mais fazer?

Vários questionamentos foram se desdobrando, mas a minha percepção de classe, tão forte desde o ensino médio, indicava duas tendências:

1 – Permanecer independente e construindo agendas estando fora do aparato partidário, buscando pessoas legitimamente eleitas ou filiadas a partidos, inclusive nas eleições institucionais das universidades, para levarmos as pautas adiante;

2 – Filiar-me ao PDT, o único partido que aceitou todos os convites que havíamos feito para tratar dos assuntos importantes para o país, desde as eleições até um projeto específico sobre cidades inteligentes.

Me mantive na primeira tendência até o fim das eleições de 2022, com o coração apertado por estar vendo o Brasil voltar a ter que escolher entre dois representantes de um mesmo modelo de governança política fisiológica e de um mesmo modelo econômico, mas com comportamentos completamente distintos no âmbito da institucionalidade. Me entristeceu também ver uma figura política tão querida quanto o Ciro Gomes, em quem votei e fiz campanha em 2018 e 2022, tentar simular uma comunicação mais violenta e adjetivadora, a fim de buscar públicos que estavam em movimentos pendulares entre duas figuras que já haviam estado no cargo de Presidente da República e que, portanto, tinham recall. Essa estratégia não era necessária do ponto de vista do conteúdo, mas sim da capacidade de produzir alcance e engajamento nos algoritmos.

O segundo turno de 2022 fez com que eu enterrasse de vez a ideia de me filiar ao partido. O racha da militância tornou-se bastante violento, impulsionado pelo ressentimento genuíno de quem escutou nos últimos anos os discursos críticos às práticas do Partido dos Trabalhadores em busca da consolidação de uma hegemonia no campo progressista. O PDT resolveu entrar na campanha de Lula com mensagens truncadas. Uma hora era um apoio crítico e condicionado, noutra era um apoio irrestrito e sem exigências. Sendo que, desde 2018, o discurso era no sentido de que todos os barcos haviam sido queimados. E no meio disso tudo, o tratamento que alguns filiados davam aos eleitores engajados, a suas críticas e questionamentos era “filie-se primeiro, depois venha falar sobre o que o partido deveria ou não fazer”.

Entendo essa lógica: um partido é uma instituição que tem forma e conteúdo. Tem dinâmicas internas, hierarquias e processos. E tem disputas, muitas disputas. Parte dos filiados pede que outros sujeitos, que não vivem “da” ou “para a” política, entrem nas estruturas dos partidos a fim de juntarem forças para fazerem reformas internas e mudarem paradigmas. Isso faria parte de uma noção de democracia interna, que está ligada à ética da responsabilidade, mas que quer alavancar valores e convicções que esses filiados consideram nobres. Esse processo, no entanto, parece bem lento e engessado, principalmente quando se enxerga com os olhos de quem está do lado de fora.

Mas vejo questões graves nesse raciocínio: se a pessoa que está fora do partido lê ou escuta de outra que está lá dentro que precisa de ajuda para mudança interna, principalmente quando essa pessoa tem certa relevância no contexto comunicacional desse partido com o público, qual será a mensagem recebida? Aquela pessoa que está há muito mais tempo lá dentro e tem alguma relevância não consegue, então por que e como um novo filiado conseguiria ajudar na reforma de alguma maneira?

O fim das eleições trouxe ainda a entrada do PDT no novo governo de Lula, o afastamento de Ciro Gomes da vida pública e um acirramento das disputas pelas versões e pelos espólios das eleições de 2022. Nas mídias sociais, cujos algoritmos beneficiam as polêmicas e os desafetos, a tolerância com o pensamento discordante está em tendência negativa.

Do fim das eleições até a semana do Carnaval, grupos que fizeram campanha ostensiva em favor do Lula e que apoiaram a entrada irrestrita do PDT no novo governo começaram a fazer execração pública de figuras ligadas à campanha do Ciro em 2022. Fazem isso contra pessoas que têm pensamentos de caráter menos progressista e mais ao centro, mas que adotaram o PDT como partido por entenderem ser esse um espaço democrático em que suas ideias teriam alguma ressonância histórica e capacidade de diálogo.

Dois exemplos desses últimos quadros são Aldo Rebelo e Robinson Farinazzo, que são acusados por parte da militância de serem simpatizantes de um grupo extremista chamado Nova Resistência (NR), movimento que supostamente teria integrantes filiados ao partido. As alegações são formuladas com base em fotos em que os dois aparecem juntamente de supostos membros desse movimento. Aldo e Farinazzo negam qualquer vínculo ou simpatia.

A mais recente polêmica foi trazida à esfera pública após um militante de MG ter deletado num grupo de WhatsApp o vídeo de uma entrevista que Farinazzo deu ao canal Brasil Paralelo, conhecido por produzir conteúdos para o público de extrema-direita. No vídeo, Farinazzo comenta sobre a importância do nacionalismo na construção e manutenção da soberania de um país, considerando um contexto de geopolítica em contraponto à visão globalista. O conteúdo da fala não ensejou a ação, mas sim onde ela aconteceu. Após haver reclamação pública por parte dos que se sentiram censurados, o militante os removeu do grupo e começou a fazer publicações desabonadoras com relação a essas pessoas e quem defendesse o direito deles de questionar aquela atitude.

Se em 2019 me senti traído e ressentido pelo posicionamento de Tábata Amaral com relação à Reforma da Previdência e a outras votações, hoje entendo que aquela sensação tinha a ver com a minha convicção quanto à democracia enquanto regime de participação plena do cidadão e de todos os envolvidos nos processos decisórios na escolha de como agir. Algo próximo da ética comunicacional de Habermas: para que algo possa se estabelecer como verdade contextualizada, é necessário que todos os envolvidos partamos dos mesmos pressupostos de possibilidade de conhecimento.

Tábata falava que havia estudado e passado pelos diálogos internos de movimentos como o Acredito para tomar as suas decisões. Mas o fato é que não sabíamos, nos grupos do movimento, como ela votaria naquelas matérias até que ela tivesse, de fato, votado, e nos digladiávamos, enquanto isso não acontecia, dentro de nossas discordâncias. Não havia esse contato direto da representante eleita no processo político decisório com a base do movimento, quem dirá com o eleitorado.

Em resumo: o dilema da filiação é um falso dilema. O que há, na verdade, são um Dilema de Hermes e um dilema da democracia. O Dilema de Hermes acontece quando a linguagem dos deuses precisa chegar aos mortais e vice-versa. Quem fazia isso na mitologia grega era Hermes, mensageiro dos deuses. Daí vem o termo hermenêutica, que está relacionado ao saber da interpretação, de tornar familiar aquilo que é estranho. Partidos como o PDT, dentre outros do campo progressista, parecem estar vivendo um momento crítico por não conseguirem estabelecer uma comunicação com a ética das convicções, aquela que é natural ao eleitorado, e por não estarem abertos a (re)aprendê-la. A linguagem que articula o mundo desses partidos é a da ética da responsabilidade e querem exportá-la para as massas.

Esse trabalho é contraproducente e gera o segundo dilema, que seria o da democracia: as pessoas que não têm a política como vocação passam a sentir que não existem nessas instituições políticas canais de escuta e ressonância, mas de palanques e panelinhas. Clubismos pouco acessíveis e que demandam muito do escasso tempo que resta às pessoas que não vivem “da” e “para” a política. Pessoas como eu, um pesquisador; minha mãe, servidora pública e profissional liberal; ou muitos outros exemplos de gente que gostaria de contribuir com ideias, projetos e iniciativas, mas que não tem interesse em ocupar especificamente espaços partidários ou eleitorais.

É preciso profissionalizar a política novamente. E é preciso que essa profissionalização passe a reconsiderar internamente os sentidos possíveis de uma democracia no contexto comunicacional do século XXI. Os partidos do campo progressista patinam em gelo, se chocando e se xingando, inclusive internamente, enquanto fazem buracos nesse lago congelado que logo engolirá a todos nós. Estamos prestes a ver o fim de mais uma era política no Brasil: o personagem Lula, em breve, estará apenas na memória. O que teremos a oferecer aos nossos irmãos e irmãs além de convites de filiação para que os partidos continuem a existir?

 

Referências

CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica: Ensaio sobre a Antropologia da Comunicação Urbana. 2. ed.. São Paulo: Studio Nobel, 2004.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. 4.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

WEBER, Max. A política como vocação (1918). In Ciência e Política: Duas Vocações. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2010.

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